terça-feira, 23 de setembro de 2008

Prefácio

A casa com três pátios estuda a influência filosófica de Nietzsche sobre uma das mais importantes obras do arquiteto Mies van der Rohe[1]. Trata-se de uma breve análise sobre o momento vivido pelo arquiteto, alguns acontecimentos que marcaram sua carreira e principalmente a filosofia como fonte de inspiração para sua casa imaginaria.
O presente trabalho analisa o pensamento de Iñaki Ábalos em seu livro "A Boa-Vida", o qual traz uma abordagem bastante interessante da casa.
As idéias transpostas no projeto vão além das que podemos encontrar nos manuais de arquitetura. Elas foram buscadas em uma concepção de mundo e de homem diferente das convencionais. Não há um método para projetá-la, o arquiteto simplesmente reflete no projeto a imagem de um indivíduo e dessa forma concebe a casa. Este trabalho quer, por último tratar da subjetividade como uma nova opção de pensar a casa e o habitante.


[1] Casa com três pátios, Mies van der Rohe, 1934.

Mies van der Rohe



De acordo com o Iñaki Ábalos, na década de 1920, o arquiteto vivenciou momentos complicados: sua renúncia à família e o auge do Nacional-Socialismo provocaram nele o questionamento de sua vida pessoal e profissional justo quando iniciava seu contato com um novo grupo de intelectuais – em especial, Alois Riehl, um dos principais filósofos berlinenses do século XX, autor do primeiro livro sobre Friedrich Nietzsche –, bem como os historiadores Werner Jaeger e Heinrich Wölffim.
Ao ter contato com as obras de Nietzsche a partir de Riehl, o arquiteto se distanciava do positivismo moderno e seus preceitos: “Somente através do conhecimento filosófico revelam-se a ordem de nossas tarefas e o valor e a dignidade de nossa existência” (Mies van der Rohe, 1927).
Mies também buscou influências de um dos precursores do movimento modernista, o arquiteto holandês Hendrik Berlage. Segundo este, a lei universal não era mais a verdade histórica, mas a procura da essência, da verdade da construção.
Ao contrário de outros companheiros modernos como Hugo Häring e Ludwig Hilberseimer, que trabalhavam na idéia de casas pátio de mínimo custo econômico desenhadas para proporcionar o máximo conforto para famílias-tipo, o arquiteto parte para projetos individualizados, completamente contrários à idéia de estandardização.
A repetição de unidades idênticas a partir do Existenzminimum não despertava qualquer interesse em Mies. Foram poucos os projetos de casas geminadas criados por ele. Na verdade, o que ele buscava era aprimorar a idéia de individualizar um sistema e operar com poucas variáveis interligadas, de forma a obter resultados completos e diversos, tanto construtivos, quanto estruturais ou espaciais. Podemos perceber a forte influência de Hans Sedlmayr sobre o arquiteto, principalmente se olharmos para o desenho da casa, cuja sinuosidade dos espaços internos é reflexo do movimento curvilíneo realizado por um automóvel.
É importante ressaltar que em todas as casas-pátio está presente a intenção de promover a individualidade, diferentemente da idéia do “objeto-tipo” produzido em série e que nessa época foi muito trabalhado em todas as áreas, da construção civil à indústria automobilística com o famoso modelo automotivo Ford T, produzido em grande quantidade e a um baixo custo, considerado o grande paradigma da industrialização, conforme aponta Nilton Vargas em seu ensaio sobre Inovação e Gestão de Mudanças na Indústria da Construção.

De acordo com o fundador da Ford Motor Company e autor do modelo T, Henry Ford (1914):

Você pode escolher qualquer carro, de qualquer modelo e de qualquer cor. Desde que seja Ford, modelo T e preto.

Se analisarmos as dimensões dessas casas percebemos a distinção daquela idéia do Existenzminimum que estava em alta no século XX. Os projetos todos aproximam-se de 200 e 300 metros quadrados e, somando-se aos pátios, as áreas aproximam-se dos 1000 metros.

"O solitário caçador da verdade"

Para entendermos qual a finalidade das casas enquanto habitação, devemos pensar para quem são essas casas, a que tipo de cotidiano elas são destinadas, que valores são transpostos para esse ambiente, de que noção de homem partem os projetos dessas casas e que referências pressupõem.

As casas-pátio são como exercícios abstratos, projetadas sem que sejam destinadas a um cliente e desprovida de qualquer programa familiar. Quando Mies resolve trabalhar com o máximo de abstração possível, ele se nega a pensar nas casas que projeta a imagem da família. Mais que isso, abre mão dos programas convencionais, dos elementos representativos de privacidade e exigências morais embutidos. O arquiteto faz isso porque deseja compreender a essência da vida moderna e, dessa forma, renuncia a memória que a casa guarda de si como ambiente da família.
Foi por essa busca constante da essência construtiva, da precisão do detalhe que ele mesmo denominou sua arquitetura de pele e osso, conseqüência da desmaterialização.
Nenhum desses estudos tipológicos possui mais de um dormitório, ou mesmo, mais de uma cama. O espaço é organizado de forma contínua: os móveis e objetos que promovem as interrupções. É a partir daí que Mies inicia a discussão sobre continuidade e conectividade, questionando como viveria o homem moderno quando se trata de atender primeiramente sua individualidade. Daqui pra frente, vamos tratar da casa com três pátios de 1934 que, apesar de não substituir as anteriores, é sem duvida o produto mais bem acabado quando se trata das casas-pátio.

A casa não foi pensada para nenhum tipo de família, mas se considerarmos suas dimensões, dificilmente pensamos que seu usuário seja uma única pessoa, assim como não imaginaríamos que muros altos não pretendem servir como limite do lote, muito menos para provocar o conforto ambiental no pátio. A verdadeira função/motivação dos muros é possibilitar privacidade e permitir que a vivência nesse espaço transcorra livre, livre de toda moral e coerção social.

O Habitante

Ao chegarmos nessas análises de projeto, fica difícil não pensarmos numa relação do habitante com o que Nietzsche vai chamar de “super-homem”. No livro Assim falou Zaratustra (NIETZSCHE, 1888), feito em estilo bíblico, Nietzsche esconde-se atrás do profeta Zaratustra para anunciar a chegada de um novo corpo e um novo pensamento que não se trata mais de um humano, mas de um sobre-humano que é produzido por meio das nossas próprias experiências. Essa figura, “o super-homem”, deve reconstruir posição no mundo. De um modo geral, somos motivados pelos medos, hábitos, superstições, ressentimentos e todas demais coisas que são atribuídas à natureza humana. Para Nietzsche, todos nós somos super-homem em potencial, basta livrarmo-nos de toda a sujeição imposta pela sociedade.
Mies van der Rohe (1934) propõe uma condição inicial para esse sujeito – o isolamento. Essa condição proposta pode ser advinda da interpretação feita do livro de Nietzsche pelo arquiteto. Entende-se que o profeta Zaratustra dirige-se à montanha e nela descobre o retiro da solidão. Sendo assim, esse isolamento constitui um grande aliado para a criação de valores independentes e buscar uma nova lucidez.

Dada essa busca individualista, os muros da casa vão dar ao sujeito o isolamento que ele necessita ter para formar uma construção de si, assim como no pensamento nietzscheano.
Nietzsche (1882), em Gaia Ciência, assim considera a importância do isolamento:

[...] chegará um dia - quiçá muito breve- em que se reconhecerá o que falta a nossas grandes cidades: lugares silenciosos, vastos e espaçosos, para a meditação. Lugares com largas galerias cobertas para os dias de chuva e sol, aos quais não atingirá o ruído dos carros nem o pregão dos mercadores, e onde uma etiqueta mais sutil proibira até o sacerdote de orar em voz alta: edifícios e construções que, em seu conjunto, expressarão o que há de sublime na meditação e no isolamento do mundo.

Ainda nessa obra, a questão do eterno retorno como a recuperação do presente frente à tirania do futuro proporciona uma volta a vida e as paixões contrárias aquelas impostas.

A casa com três pátios 1934

Analisando agora a casa em sua totalidade, temos primeiramente um grande pátio, sendo este uma extensão da casa, que é envolvida por grandes muros. Nesse pátio encontramos a representação da natureza que, não mais no estado puro, passa-nos a idéia artificial de mundo. Nesse pátio não há uma forma de se relacionar com a natureza como faria as famílias-tipo, cultivando flores ou inserindo objetos de lazer. O que temos é apenas uma relação contemplativa da constante sucessão do mesmo. Veremos o correr do tempo natural que o jardim e as árvores, juntamente à visão que se tem do céu nos proporcionaria.

Temos que falar da casa com três pátios como uma casa urbana também, pois o arquiteto não nega a cidade. Seus muros não são resultado só do sujeito que habita o interior da casa, inclusive, mas são também decorrentes de uma cidade turbulenta e de um homem que tem uma vida social intensa. Portanto, a casa não deve ser entendida somente para fins reflexivos, mas também como meio de desenvolver relações mundanas.
No século XVIII, por exemplo, os indivíduos faziam suas reflexões em casa e debatiam a partir daí em ambientes públicos da cidade burguesa. A casa com três pátios proporciona esse tipo de situação – ao mesmo tempo protegida de indiscrição, aberta ao imprevisto.
Ao reorientarmos nossa análise para os materiais da casa, percebemos que o arquiteto trabalha tanto com materiais tradicionais como o tijolo, a pedra e o couro quanto com materiais mais avançados como o aço e o vidro.
Um elemento presente nos desenhos da casa com três pátios é a lareira feita em tijolos. A mesma é disposta na parede de maneira discreta para não permitir a sensação de verticalidade, como se fosse apenas um objeto que remete a uma evocação de passado, um tempo que pode voltar sobre si mesmo.
A pedra utilizada nos muros e no piso faz referência às tradições locais. É um artifício utilizado por Mies como forma de passar mais subjetivação da modernidade, afirmando a condição temporal da habitação.
Ainda em relação influência de Nietzsche, Rohe acaba eliminando a verticalidade na casa para conseguir afirmar o sujeito como o protagonista, como se a horizontalidade fosse a negação da divindade e a referência a um espírito mundano.
Da mesma forma acontece com a luz. A iluminação densa e zenital está completamente fora do projeto. O arquiteto usa como artifícios a exploração da reflexão para conseguir no piso e no teto a mesma intensidade de luz, inclusive, Mies também utilizou desses artifícios no pavilhão de Barcelona, onde os materiais do piso e do teto provocam um equilíbrio ótico.

A casa com três pátios 1934

A simetria também vai ser um recurso muito utilizado por ele para determinar uma nova compreensão do espaço. Existe de certa forma uma simetria sensorial: o pé direito da casa é próximo de 3,20 metros e isso faz com que um indivíduo de estatura mediana esteja dividindo com o olhar os planos do piso e do teto. Poderíamos dizer que esse cuidado tomado pelo arquiteto faz referência à escala de percepção humana. Todos esses efeitos darão a sensação de que o individuo encontra-se num templo, mas certo de que nele tem apenas o homem como protagonista.
Ao olharmos o interior da casa com três pátios percebemos que o mobiliário é escasso. Eles fazem parte de um contexto artístico dentro cada casa. O mobiliário é reduzido porque o individuo não precisa de muitos objetos para viver, mas, de elementos que vão auxiliar na reflexão sobre sua própria maneira de viver. Sendo assim, o conforto passa a ser uma espécie de busca a percepção, como se fosse um conforto espiritual.
Pode-se dizer que a casa de Mies foi inspirada no super-homem e que, assim como Zaratustra é o profeta que anuncia e que descreve esse homem, Mies van der Rohe descreve e anuncia a casa e, ainda, como seria o habitar para esse novo homem, que também se confunde com sua própria vida. Quando o arquiteto faz a opção de viver sozinho e leva consigo somente aquilo que daria seu conforto espiritual, talvez vai se construindo por meio desse projeto.
Assim sendo, não se sabe até onde a casa é produto de sua objeção pessoal ou da interpretação filosófica de Nietzsche. A única coisa que podemos ter certeza é de que o filosofo habita a casa tanto quanto o próprio arquiteto.

Considerações finais

Tratamos inicialmente aqui das casas-pátio até chegar no que chamamos de produto mais bem elaborado, a casa com três pátios de 1934. Vimos também a enorme diferença de premissas e objetivos com seus companheiros modernos. Mies adotava a subjetividade como fonte criativa do seu projeto, contrário à objetividade. O arquiteto questiona o público e o privado, as relações sociais, o tempo e a memória de uma época.
Este trabalho pretendeu mostrar que a habitação pode ser concebida diferentemente da forma que os manuais de arquitetura nos apresentam. A casa imaginária que acabamos de visitar é apenas um exemplo diante de inúmeras direções que podemos tomar para conceber uma casa.